Prefácio ao As Big Techs e a Guerra Total — Complexo militar-industrial-dataficado
por Flávio Rocha de Oliveira
As relações entre o desenvolvimento tecnológico e a guerra não são novas. Se optarmos por uma restrição histórica arbitrária, podemos citar o impacto que as diferentes fases da Revolução Industrial tiveram na mecanização da guerra ou a construção maciça de artefatos nucleares durante a Guerra Fria. A face contemporânea da relação entre a guerra e a tecnologia atende por um nome: Inteligência Artificial (IA). Seu desenvolvimento produz um impacto na maneira como economias, sociedades e governos funcionam.
Os governos das grandes potências, em especial dos Estados Unidos, usam a IA como um ativo estratégico na defesa de seus interesses geopolíticos. É nos EUA que se consolida um modelo de desenvolvimento tecnológico das IAs alicerçado em grandes empresas — as chamadas big techs —, com um fluxo maciço de capitais públicos e privados e o estímulo político do governo federal estadunidense.
É nesse contexto que o cientista político Sérgio Amadeu escreveu o presente ensaio. A partir de suas pesquisas envolvendo o ciberespaço, o colonialismo digital e o avanço dos meios digitais em todas as esferas sociais, políticas e econômicas, Amadeu constrói uma obra centrada na compreensão das relações entre as tecnologias que envolvem a Inteligência Artificial e a guerra no mundo contemporâneo.
De maneira elegante e concisa, o professor da Universidade Federal do ABC rastreia o desenvolvimento das tecnologias cibernéticas, sobretudo nos Estados Unidos, e nos mostra o fortalecimento das corporações protagonistas desse processo: Google, Amazon, Microsoft, Oracle e Palantir. O argumento principal de Sérgio Amadeu é que o avanço das tecnologias de Inteligência Artificial está redefinindo o complexo industrial-militar dos Estados Unidos e a própria atividade da guerra.
A partir de um desenvolvimento fortemente centrado na dataficação das relações econômicas e sociais, as big techs norte-americanas passaram a fornecer seu modelo de Inteligência Artificial para o governo. Em termos geopolíticos, as Forças Armadas desse país aproveitaram as ofertas das corporações na forma das chamadas nuvens, assim como a infraestrutura de software e hardware montada em torno dos datacenters, para automatizar processos de tomada de decisão e de uso de armamentos no campo de batalha.

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Neste livro, Amadeu também explica o que entende por Inteligência Artificial, indo além da propaganda corporativa que vende essa tecnologia como uma forma de inteligência consciente: para o autor, a IA “realmente existente” é o conjunto “dos sistemas automatizados que utilizam algoritmos estatísticos e probabilísticos para classificar e extrair padrões de bases de dados gigantescas, empregando um elevado poder computacional”.
Ao longo do livro, o autor discute como foi se dando o uso da Inteligência Artificial por parte das Forças Armadas dos Estados Unidos. A militarização do uso da IA ocorre, em ritmo acelerado, no desenvolvimento de sistemas autônomos com aplicação na logística, na espionagem, na seleção de alvos e nas operações psicológicas de propaganda durante uma guerra ou em uma operação militar de menor envergadura.
Ao observar o papel central das big techs norte-americanas, Amadeu cunhou o termo “complexo militar-industrial-dataficado”: as mesmas empresas que desenvolvem essas tecnologias com o objetivo de rastrear e prever os gostos de cidadãos tornados consumidores, produzindo dados que retratam o comportamento dos seres humanos, agora transferem esse conhecimento para que o aparato securitário estadunidense (especialmente os militares, mas também os integrantes dos serviços de inteligência) possa defender os interesses geopolíticos do país.
Isso gera uma intensificação do lobby das grandes corporações de tecnologia sobre o governo norte-americano. Os grupos econômicos do setor tecnológico agem de maneira coordenada com o objetivo de influenciar políticos eleitos e militares para conseguir contratos dos mais gordos e lucrativos. Série Amadeu, ao descrever esse processo com base em fontes primárias e secundárias, e também em pesquisas de filósofos e cientistas sociais que se debruçam sobre o tema, dá um passo além e mostra uma diferença entre o “antigo” complexo industrial-militar e o atual complexo militar-industrial-dataficado: ao fornecer as infraestruturas e tecnologias, as big techs se tornam parte do sistema de tomada de decisão das Forças Armadas dos Estados Unidos.
Sérgio Amadeu mostra, empiricamente, que as big techs influenciam de maneira tática os acontecimentos no campo de batalha. Um caso que ele nos apresenta é o que envolve o Estado de Israel na atual fase de guerra contra os palestinos na Faixa de Gaza (início de 2025). Ele cita o Projeto Lavender, um sistema de IA desenvolvido pelos israelenses com o objetivo de identificar alvos militares, sobretudo em Gaza, e o Projeto Nimbus, que consistiu no fornecimento de serviços de nuvem para os militares israelenses.
O Google, a Amazon e a Microsoft Azure conseguiram os contratos de fornecimento das infraestruturas e serviços de IA para Israel implementar esses projetos. O resultado, como bem aponta Amadeu, pode ser visto no massacre contínuo da população civil palestina. Alvos militares são identificados em meio a civis palestinos, e as ordens de ataque seguem a lógica de eliminar um inimigo desumanizado, ao lado de pessoas que não são combatentes.
Amadeu também captura a contradição entre o discurso das big techs, que apresenta a IA como uma ferramenta para o progresso da humanidade, e a decisão explícita por parte delas de fornecer sistemas para a guerra e para a vigilância. Inaugura-se uma simbiose entre as empresas norte-americanas e o governo dos EUA.
Com atuação tanto na esfera militar como no âmbito da economia civil, as grandes corporações de tecnologia extraem quantidades monstruosas de dados de sociedades, indivíduos, Estados e empresas, tanto em época de guerra como em época de paz, em quase todo o mundo. Isso confere às elites estadunidenses o acesso global a informações que podem ser usadas, no momento oportuno, como fonte de poder contra inimigos e também contra aliados.
Sérgio Amadeu aponta a urgência de um amplo debate ético envolvendo o uso da Inteligência Artificial e sua aplicação na atividade da guerra. Com a evolução e a fusão entre o complexo militar-industrial-dataficado e o capitalismo ancorado na vigilância de sociedades e indivíduos, tornam-se imperativas a reflexão crítica e uma atuação política que enfrente e controle o poder das big techs.
Os interesses em manter os enormes ganhos econômicos das corporações se fundiram perigosamente com os interesses do Estado norte-americano em manter a hegemonia global. Este ensaio de Sérgio Amadeu ajuda leitoras e leitores a construir as bases para um debate que é, ao mesmo tempo, ético e político. O autor abre caminho para a compreensão do papel geopolítico das big techs na atual fase de desenvolvimento do sistema político e econômico capitalista. Com o debate, fortalece-se a capacidade de resistência e abre-se a perspectiva de neutralizar o poderio de corporações tecnológicas e de governos imperialistas.
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Flávio Rocha de Oliveira é graduado em Ciências Sociais pela USP, além de mestre e doutor em Ciência Política pela USP. É professor do bacharelado em Relações Internacionais da UFABC. Atua em pesquisas na área de Ciência Política, com ênfase em Segurança Internacional, Estudos Estratégicos, Análise de Risco Político, Política Internacional, Teoria das Relações Internacionais e Teoria Política.